sábado, 19 de dezembro de 2009

A VIAGEM

                                                       Patrícia Ferreira da Silva




Numa noite de 1973 chegávamos a Rio Grande, num fusquinha atopetado de coisas. Eu, papai, mamãe e minhas duas irmãs.


A despedida tinha sido ao mesmo tempo dolorosa e emocionante desde aquela época eu já gostava de uma boa aventura. A viagem foi longa e incômoda, mal podíamos nos mexer, pois o banco traseiro, onde estávamos sentadas estava lotado, com a televisão, sacos de roupas, acolchoados, travesseiros e, no meu colo, como se não bastasse: bacia, bule, chaleira e duas canecas.


A Letícia na outra extremidade, de vestido listrado de vermelho e branco, meia calça de renda e correntinha no pescoço que era puro talco, se perdia no meio de cobertas, feito um gato de catálogo.


E assim o caminho era feito em silêncio, um silêncio cheio de expectativas e saudades, do vovô, vovó, Carlinhos e toda a família e amigos que tinham ficado pra trás. Nenhum de nós sabia ao certo o que nos reservava aquela nova cidade, tínhamos morado a vida toda nos fundos da casa dos meus avós, tão protegidos e felizes. Agora eu via com olhos de menina de oito anos o que era a verdadeira felicidade.


Meu pai parou numa lancheria para comermos pastel com refrigerante. Eu e Letícia escolhemos Fanta Uva, só pra ficarmos de bigode roxo e rirmos à toa uma das outras. A medida que a estrada ia ficando pra trás, meu pai ia falando da cidade onde íamos morar, tentando nos convencer de que era algo próximo ao paraíso. Até o momento a única coisa que me agradava era saber que nos fundos da casa me esperava um grande pé de goiabas. Outro forte argumento era o de que conheceríamos o mar e aos fins de semana poderíamos passar quanto tempo quiséssemos na praia do cassino, nome e lugar que traziam a combinação perfeita para a nossa família, praia para minha mãe que adorava o mar e Cassino para meu pai, um jogador inveterado.


Era madrugada quando entramos na cidade, mas o céu se mantinha cheio de estrelas que pipocavam luz no lugar, que parecia se localizar em um mundo a parte do nosso, completamente diferente de tudo o que eu já tinha visto na vida. A presença dos meus pais não era suficiente para anular aquele frio na barriga frente aqueles prédios enormes, letra luminosas por toda a parte. Desenhos de pessoas sorrindo, homens de bota e chapéu, uma loira imensa esticada feito um peixe chamava-se Ipirella e desfilava diante dos meus olhos, na tela do vidro traseiro. Letícia dormia, parecia um anjo indefeso e eu com tanto sono que tudo parecia um tanto irreal.


Em seguida pegamos uma estrada próxima a praia e o cheirinho de maresia invadiu o carro. Dormi, só acordando quando minha mãe sacudiu o meu braço, me chamando para a rua, só aí percebi que o carro não estava mais em movimento. Quando olhei pela janela o que vi foi a coisa mais sensacional que já tinha visto até então. Fiquei assim, sem falar, a voz mesmo que eu quisesse não saía. Era o mar, comprido e brilhante, no fundo o monstro sol enorme, botando medo nas últimas estrelas do céu. Enquanto eu sonhava os outros já estavam lá, correndo na areia. Meus pais na beira da água abraçados olhavam aquele espetáculo lindo. Ao longe uma plataforma guardava vários barcos, os pequenos se preparavam para ir mar a dentro em busca de pesca. Outros maiores tinham até janelas, pareciam casas flutuantes. E fiquei assim, num devaneio, balançando com a gaivota pintada na vela daquele barco e nem notei que os pequenos já tinham se ido, ganhavam o alto mar e minha família esperava paciente ao longe, escorada no Herby, nosso fusquinha branco.


Mais uma meia hora rodando e chegamos a uma vila com as casas todas iguais, separadas em grupos de duas, geminadas. A nossa era verde, ligada a uma cor de rosa, onde morava uma senhora que nos atendeu com jeito de quem já nos conhece há muito tempo. Falava diferente, coisa mais esquisita.


-Como forram de viagem seu Dinarro, pensei que família de senhor nom chegava mais. – era desse jeito.


Dona Lagarta nos ofereceu bolinhos deliciosos, bem redondinhos e com açúcar em cima. Na verdade o nome da pobre era Hidelgarta, mas custamos a aprender e acabou ficando Dona Lagarta, a custa de alguns beliscões da minha mãe.


Mais tarde quando o pai trouxe a chave da casa, estávamos todos no pátio da vizinha, de onde podíamos enxergar os fundos da nossa casa, mamãe por cima do muro e nós, pelos intervalos dos tijolos. Era um pátio pequeno, cheio de plantas, entre elas, a prometida goiabeira, que frondosa estendia sua sombra larga da porta dos fundos até a metade do quintal. E lembrei de outra goiabeira, uma que eu mesma havia plantado lá longe, na minha outra casa. E me bateu saudade, uma vontade de chorar. Chorar foi o que fiz todas as noites por muito tempo, quando todos estavam dormindo, não queria causar mais problemas. Sentia uma dor tão forte no coração, “tum” apertado, parecia doença, mas coração não dói. E eu não ia morrer dizia minha mãe, era só a saudade.


Se a noite eu chorava, durante o dia me aventurava a conhecer a cidade, seus supermercados, suas ruas largas e asfaltadas, seus caminhos com calçadas, onde transitávamos a procura do seu Dinaro, que na certa tinha descoberto uma nova carpeta.


Era período de férias e eles se desdobravam para arrumar vagas em um escola, para mim e a Letícia, papai preferia uma escola de freiras, mas era particular e o dinheiro não dava mesmo. Dona Rosa, minha mãe, perambulava pelas secretarias das escolas públicas e não dava ouvidos aos sonhos do marido, já estava acostumada. Por fim uma surpresa, o Dom Quixote Mor havia convencido a firma a pagar a mensalidade do Grupo Escolar Cristão Joana D’Arc, uma das melhores escolas da cidade. E não é preciso dizer que chegou em casa inçado de tanto orgulho, tirando a maior onda com a cara de desconfiada da minha mãe. Sempre com o pé atrás.


Mas não era porque a firma ia pagar a mensalidade, que a escola deixava de ser particular e todos os problemas estavam resolvidos. Tinha o uniforme, material escolar de primeira e até uma bíblia especial que era vendida na própria escola, a que tinha lá em casa não servia. Muito tarde para procurar outro colégio e para que não perdêssemos o ano, Dona Rosa resolveu arrumar dinheiro, abriu a porta da sala e começou a servir almoço para os colegas do meu pai, o que não deixou muito satisfeito. Nós éramos as garçonetes e meu pai como sempre se acostumou com a idéia e já traçava planos mirabolantes de um restaurante especializado em comidas do mar: peixes, camarões, etc. Sonhava...


Não custou nada para percebermos que em Rio Grande era tudo diferente, muito diferente. Os horizontes não tinham campo, nem estrada de chão, para frente o portão da usina, montes de ferro e latões de óleo. Para trás nada dava em lugar nenhum. Ficávamos, eu, Letícia e acho que minha mãe também, esperando a sexta-feira que tinha aquele gosto de véspera. No cardápio galinha, farofa e bolinho de arroz, feitos pra sobrar e encher a sacola que levávamos a praia no sábado bem cedinho.


Lá esquecíamos o choro noturno, o salário do pai que desaparecia todo o fim de mês, quase sempre junto com ele, as nojentas da escola, a missa forçada, os sapatos pretos, tudo ficava pra trás.


Aquela era a nossa estrada que sabíamos passava pela areia branca da praia, o mar azul e por aquele ventinho gelado que invadia a alma da gente e levava o pensamento pro outro lado do mar...Chegávamos então a Ouro Negro, no quintal da nossa velha casa, as luzes estavam acesas, vovó no fogão. Estávamos de volta.

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