sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Preces e Risos






   Numa certa época o objeto mais chique que tínhamos em casa era uma bíblia grande com a borda das folhas douradas.Todas juntas reluziam parecendo ouro. Até hoje não sei o fim que deram a ela;só sei que fazia parte das diversas coleções

de livros que meu pai adorava comprar dos viajantes.Meu amor

pela leitura é herança de pai e mãe; minha mãe sempre gostou de ler e meu pai era apaixonado pelos livros , achava-os importantes, gostava de vê-los na estante enfileirados e limpos, com cheiro de novo.

   Novenas e procissões faziam parte do calendário religioso da família e nós meninas , botávamos vestidos de brodery , meia americana,sapato de verniz , melindrosas de bolinhas e correntes com medalha de santinho no pescoço.

Era uma festa , toda a cidade se reunia , a procissão partia da igreja matriz e dava a volta na cidade. A mais bonita pra mim era a de Santa Bárbara, nela a Santa era carregada cheia de flores pelos mineiros que usavam capacetes com as luzes acesas na cabeça,uniformizados iam iluminando o caminho até a mina de carvão, onde a Santa era levada até o subsolo para abençoar o local e trabalhadores,protegendo-os de acidentes e desgostos, como se isso fosse possível...

Mais tarde continuaria gostando muito dessa data , 4 de dezembro, aniversário de alguém muito especial , com quem partilharia a janela pra ver a santa passar todos os anos em direção ao poço, naquele ritual idólatra.

Mas, voltando ao passado , numa dessas procissões , iam em nossa frente carregando velinhas acesas e rosários de cristal,duas senhoras respeitadíssimas ; uma delas muito eloqüente

em rezar suas rezas e cantar seus cantos,os quais podiam ser ouvidos a bons metros de distância .

Dona Josefa e Dona Carmelita eram também conhecidas por gostarem de uma boa fofoca e estarem sempre muito bem informadas a respeito da vida alheia.

Pois nessa procissão,o padre dizia: ave Maria cheia de graça ,o senhor é convosco e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.

E os fiéis em coro rezavam a outra Parte :santa Maria,mãe de Deus ,etc.etc..e tudo de novo.

Eu e minha irmã que mais especulávamos quem tava na procissão do que rezávamos , curiosidade própria das crianças entre 7 e 8 anos –íamos de braços dados ao lado de nossos pais e atrás da Dona Josefa e Dona Carmelita. E, como já disse , as duas rezavam fervorosas e tão alto que boa parte dos fiéis ouviam e se sentiam desobrigados de repetirem a sua parte, só que no meio das preces iam colocando os assuntos em dia . Numa dessas, subindo a rua da igreja , prosseguiam as duas eloqüentes .
   O padre disse : Ave Maria cheia de graça...
   E   Dona Carmelita: - Santa Maria mãe de Deus, zefa o que é aquele prédio ali na esquina ? agora e na hora de nossa morte.Amém.
Prontamente responde a outra:

-Amém! Glória ao pai ao fi... ,aquele é o prédio duma mulher de São Jerônimo... Santa Maria mãe de Deus.

-Rogai por nós pecadores, mas o que vão vender? Ave Maria cheia de graça .- continua  Dona Josefa.

-É uma loja, Souza e Souza é o nome (e incrementando a voz prosseguiu a oração ) Bendito é o fruto do vosso ventre ...

As duas:Amém!

   Sem poder segurar o riso, coisa que nunca consegui mesmo e para não sermos notados e acusados de blasfêmia, meu pai não menos louco pra rir, parou a beira da estrada e trocamos de lugar na procissão. Ali tinha se estragado o programa ou melhorado, cá pra nós. Eu e minha irmã, não conseguimos fazer outra coisa que não fosse rir e imitar as duas carolas, o que nos valeu bons beliscões-beliscõezinhos, que quanto menores, mais doíam.

   Quisera eu que a coisa parasse por aí, que no outro dia não tivesse a novena e eu não tivesse que ficar perto da dona Josefa, pois ela era do coro e nós, eu e outras crianças, líamos versículos bíblicos durante a missa.Tudo ia bem e eu até poderia ter esquecido do episódio, se Dona Zefa não fosse aquele tipo de carola empolgadíssima em suas rezas e cant
   Num dos cânticos ela extravasou, dessa vez para uma platéia bem maior (no mínimo metade da população da cidade). A música era aquela, cujo o refrão diz!Glória, Glória, Aleluia! Foi no decorrer da canção que dona Zefa foi se empolgando sua voz ficando cada vez aguda.

   E de repente ela se entregou a canção, todos pararam de cantar e ela continuou, abafando:glória, glória, aleluiaaaa.O padre vendo a situação prolongou o canto, até ficar insustentável. O padre então a contragosto bateu em seu ombro e fez um sinal lembrado que queria continuar a missa.

Eu, bum, explodi, explodi de rir e tive que sair correndo da igreja. SEmpre foi assim, engulo o choro, mas o riso, por favor não me peça!



FOTO: irmãs Cajazeiras da novela "O bem Amado" sempre me lembram das procissões .













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