sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O Cruzeirão




Em um ponto qualquer de Porto Alegre. Segunda, às 9 e 30 da manhã. Chuva que Deus manda. Numa parada de ônibus depredada, pichada, estropiada. Eu ali, de capa, bota, sacola numa mão, mochila na outra e um guarda-chuva de contra-peso. E nada do Cruzeirão passar.

A cada momento chegava mais e mais gente e a parada ai inchando, inchando. E as pessoas insistindo em ficar todas no mesmo lugar, em baixo do abrigo, mesmo que destelhado. Como se a passagem de ônibus incluísse vaga no abrigo.

Ao meu lado uma senhora gorda, com óculos embaciados, uma capa vinho de gabardini e chapéu mesmo tecido e mesma cor, completamente encharcados, uma bota larga de cano curto, dando ar de galochas e com a maior tromba, disputando com o olhar e o cotovelo, um espaço em cima de uma pedra.

Escoradas na lateral do abrigo, onde batia água, conversavam duas senhoras do lar, baixas, magras, apáticas e narigudas. A de verruga na sombrancelha falou para outra:

-Ele bate em mim, mas só de vez em quando. –num tom bem alto, num descanso, como que sugerido que as outras mulheres da parada, pelo menos de vez em quando levavam um sopapo ou um regabofes do marido. E ela, absoluta, a única com coragem de assumir.

A outra nariguda, por sua vez, balançava desolada a cabeça, cabisbaixa, de um lado para o outro, de vez em quando dizia:

-É brabo vizinha...é brabo...

-Ele bebe, mas não deixa faltar nada lá em casa - prosseguia a baixinha, cada vez mais inchada de orgulho.

-Os armários tão sempre cheio, do bom e do melhor!

E eu cá nos meus botões: Agora ela ta me desafiando, tá insinuando que os meus armários estão vazios. E eu nessa chuva, tendo que agüentar tudo isso. Meu Deus! My God! Alah, meu bom Alah!

E continuava a conversa, que já atraía a atenção de todos os passageiros do Cruzeirão, que não chegava:

-Não diz nome feio, que é pra não dar mal exemplo pros filho....bebe e vai dormir.

A outra, enfim trocou a frase:

-É não é fácil vizinha...não é fácil...

-Não é fácil, mas eu pelo menos não sou fingida e mentirosa, que nem a Janete Saracura, a senhora conhece né?

-A da casa amarela, a do cinamomo?

-É, a mulher do Tião maneta. Aquela apanha até por dentro dos olho. Tu te lembra quando ela se perdeu, que foi uma desgraceira pra família - falava apertando a boca e forçando uma papada, sabe como,né?

-Coisa muito triste! Mas a gente que tem filha moça, até nem pode tá falando – ponderava a outra.

-Mas eu não to falando, só to lembrando da desculpa esfarrapada que ela deu pro pai, mais pra mãe dela e que o resto da lomba ficou sabendo.

-Eu não to bem lembrada, também faz tanto tempo...-desconversava a vizinha, pelo jeito evitando fofoca.

-É faz tempo, mas ta vivinho aqui - bateu na cabeça, encaixolando os miolos e continuava:-Dizia que pegou barriga no banco quente. Por certo de algum crioulo, por que aquela criança era bem escurinha – falou rapidinho empolgada com o público atento da parada.

A essas alturas, eu já tava ensopada e tinha perdido a pedra pra gorda de óculos, que queria assistir tudo de camarote.

E a conversa continuava, enquanto ia passando uma turnê de ônibus: Cohab Cavalhada, Tristeza, T4, T2, T3 e todos os Tes, menos o Cruzeirão, o único que largava a gente em frente a Rodoviária.

Comecei a me preocupar com o horário e a sentir frio. Enfim dois ônibus pararam na sinaleira, um com as listras verdinhas, era o Cruzeiro. Num instante o povo todo se alinhou as pressas, puxando o dinheirinho da passagem. E aí vinha o Cruzeiro e POFT, dava um banho d’água em todo o mundo, inclusive na gorda que me roubou a pedra e que foi a primeira a formar fila. Bem feito! Que saco! Eu também fiquei toda encharcada, não fosse a comicidade das duas narigudas fofoqueiras terem tomado um banho e mais parecerem dois marrecos, eu teria pedido briga com o motorista.

Rumo a rodoviária, costeando o hipódromo. Quanto tempo morando nas barbas do hipódromo, sem nunca ter tido um pila pra assitir as corridas. È a vida!

Eu na janela, do meu lado uma negra forte, que no mínimo tinha despejado meio vidro de cashemere bouquet por cima. É minha mãe tinha razão, cashemere bouquet cheirava a morto.

E eu me nauseando, se virasse pra esquerda era desmaio na certa. Me levantei, eu, capa, bota, sacola numa mão, mochila na outra e um guarda-chuva de contra-peso.

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